Idael Christiano de Almeida SANTA ROSA1
Conversando via rede com dois amigos refletíamos sobre os rumos que toma a Veterinária e constatávamos que cada vez mais o veterinário é menos valorizado e cada vez mais a categoria busca reproduzir modelos sem a menor reflexão sobre o que faz. Há todo um discurso de capacitação, formação e ao mesmo tempo assistimos a uma baixa de competências técnicas e humanas. Transcrevo algumas considerações que fiz num dos nossos colóquios.
Noto também o esvaziamento dos saberes e fico pesaroso por isso. Vejo um esvaziamento também da profissão. A veterinária tem se fechado em si mesmo, olhando apenas para o seu próprio umbigo. E o pior, fica olhando para o próprio umbigo, mas por ser estrábica e míope perde o centro e não consegue ver a realidade. Temos perdido o respeito por nós mesmos, temos deixado de lado uma formação abrangente e critica para nos abraçarmos a ritos medíocres. Estamos matando a semiologia e a clinica, abusando dos exames complementares sem a menos noção da patologia clinica, do diagnostico por imagem, dos testes imunológicos. Não refletimos sobre o que falamos, sobre o que engolimos, sobre o que vomitamos em cima dos outros, dos proprietários. Ouvimos o galo cantar, não sabemos onde, mas pintamos e reproduzimos o galo de raça que cantou, um lindo Brahma de penas brancas douradas e negras, patas cobertas de pena. Arrogantes, sentenciamos que o galo que cantou e não vimos era assim e se não for assim não era o galo. Deixamos de lado o conhecer e construir conhecimento para nos voltarmos para o “prescrever”, leviano prescrever sobre o que não se conhece, para quem não se conhece.
Reduzimos-nos a prescritores. Mas prescritores competentes, pois nos vestimos impecavelmente de branco. Andamos de branco para todo lado, desfilando a nossa arrogância e prepotência e esquecendo qual seria a razão do branco, mas recriminado que se limita a usá-lo a ambientes restritos e com potencial de contaminação para delimitar áreas de acesso. Estamos empobrecendo, mas não é o empobrecimento financeiro e social que me preocupa. O que me preocupa é o empobrecimento cultural. Levantamos a bandeira do técnico. Somos técnicos e tudo que não é técnico não nos interessa, é coisa menor. Sem perceber que o técnico tem que saber ler a realidade e para isso não basta à técnica é preciso se formar na sensibilidade, na compreensão de mundo, na capacidade de ver o outro. De saber que por trás do animal tem um ser humano que é o sentido da nossa ação. Sem nos darmos conta a nossa bandeira de excelência técnica está nos empobrecendo como técnicos. Está nos tornando incompetentes tecnicamente. Está nos tornando qualificados apenas para reproduzir a técnica e não para adequá-la ao que precisamos, ao que o proprietário precisa, ao que a sociedade precisa.
Vivemos num inflar de egos, com grandes fogueiras de vaidade, que não nos aquecem, apenas nos ofuscam. Vivemos sem perceber o paradoxo do nosso tempo e nossa formação, a contradição na qual nós mesmos deixamos a nossa categoria se afundar. Sem perceber vamos caindo no trabalhador touro do taylorismo. Aquele trabalhador submetido a um trabalho escravo, pois não liberta. Um trabalhar que deve apenas executar o seu trabalho sem questionar a que propósito está servindo. Quando menor for o nosso horizonte de visão melhor, melhores trabalhadores touros seremos. Logo não há necessidade de formação de qualidade, qualquer coisa serve, pois não há mais espaço para a universidade, a pluralidade de pensamentos que constrói a pratica reflexiva. Entra aqui o paradoxo: precisamos cada vez mais de uma formação mais estreita e de qualidade pior (afinal vamos apenas reproduzir o que despejam sobre nós), a nossa lógica burguesa é, porém meritocrática e diz que as benesses devem ser dadas para o mais qualificado (ainda que abra espaço para discutir qual qualificação) e cria-se a cada dia mais e mais etapas de formação. Eis o paradoxo: o "Mercado" (deus mercado tão cantado e decantado) quer o trabalhador touro taylorista, a nossa formação burguesa quer títulos. Esse paradoxo não gera um conflito insolúvel, pelo contrario, ele é uma galinha dos ovos de ouro para o Capital. Tanto que o Banco Mundial resolveu se meter na política educacional dos países periféricos, dizer no que se deve e no que não se deve investir. E a partir da premissa que a graduação não forma ninguém para o mercado de trabalho propõe uma redução do tempo dos cursos para no máximo três anos, mas que o ideal seria menos, pois a formação para o trabalho se daria na pós-graduação. Pós-graduação que não precisa ter compromisso acadêmico, tem apenas que qualificar para apertar um parafuso especifico com uma chave especifica (começamos a ver esse filme com os mestrados profissionalizantes, os MBA´s, os cursos de especialização e cada dia uma outra novidade surge).
Nesse cenário não é de se estranhar que órgãos em crise de identidade paassem a buscar novos meios de se legitimar (veja o Exame de Qualificação Profissional do CFMV que já tem até cursinho preparatório via Internet). Conhecendo esse direcionamento e sendo capaz de somar dois mais dois fica difícil não olhar com preocupação a tal de Flexibilização curricular proposta pela LDB e que passa a ser a tônica dos processos de reforma curricular.
É incrível, mas abraçamos as panacéias com uma facilidade surpreendente. Deixar que um estudante que sequer conhece qual a extensão do curso que ele por algum motivo escolheu (muitas vezes de forma equivocada) trace o é ou não importante para a sua formação é de uma ingenuidade maquiavélica, não há liberdade na falta de verdadeira opção. O mero desejo ou achismo não gera consistência para uma decisão consciente. Estamos mais uma vez reduzindo o horizonte da categoria, estamos criando uma grande viseira.
E a técnica é a viseira que nos damos, nos travestimos de especialistas "aqueles que, segundo alguns, sabendo tudo de nada". Vangloriamos-nos disso, pois é melhor que ser generalista "aquele que sabe nada de tudo", não somos capazes sequer de refletir que esses conceitos foram alterados em nome de uma lógica que não a da vida. Generalista era o profissional que tinha condições de atuar em todas as áreas (ou na maioria delas) decentemente, sendo capaz de ser linha de frente e quando o problema ficasse por demais exarcebado, sabia a que colega recorrer. Um colega especialista, que era aquele sujeito que sabia o básico de tudo e sabia alguma coisa de uma forma especial. O especialista tinha a noção do todo. É essa visão do todo que a cada dia mais falta nos faz. A interdisciplinaridade deve a todo custo ser resgatada ou estaremos fadados a sermos técnicos medíocres, seja envergando chapelão, cinto fivelão, canivete e botina, suja de bosta de vaca e achando que quebrar a cara em rodeio universitário é o supra-sumo, seja vestido todo branco como se isso fosse um atestado de competência profissional. Ser peão não nos qualifica como veterinários e se roupa branca qualificasse açougueiros, esses seriam exímios veterinários...
É preciso abrir espaços para que os horizontes da veterinária essa profissão tão rica, tão rica que citar o bordão de "21 em 1" é reduzi-la a sua porção menor. Precisamos fomentar não só a interdisciplinaridade, mas também o multiculturalismo, a divergência, a diversidade de olhares e opiniões ou estaremos fadados a ser uma profissão sem valor e sem respeito, talvez até extinta como as profissões que o Rubem Alves enumera para falar da formação do educador. Salve o técnico com técnica apenas dentro da técnica, que reconheça o seu direito de ser o que quiser, de ser louco se assim o quiser, de ser completo, de ter cultura, de ler poesia, de escrever poesia, de fazer política. Salvemos o profissional ser humano e cidadão.
É preciso urgentemente resgatar nossa integridade, salvar nossa categoria profissional e o atual momento é o momento e não admite omissão.
(Texto adaptado, de 2004)
1Professor do Departamento de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Lavras; militante da ENEV no começo da década de 90